A faca sangrenta

Havia uma mulher, um homem e uma faca.

O homem, desfalecido no chão, encarava com seus olhos esbugalhados a mulher que segurava a faca,  ensanguentada e suja.

“Onde será que guardarei esta faca?”, pensava.

“Me descobrirão, e será o meu fim. Preciso escondê-la”.

– Guarde ali na terra, que ninguém achará.

– E se em dez anos fizerem alguma reforma e descobrirem a faca sangrenta?

– Enterrada é mais difícil. Enterre logo, você precisa viajar.

“Preciso enterrá-la antes de viajar. Mas será que é o melhor esconderijo para a faca?”

Preocupada em descobrirem sua faca, guardou na mochila para pensar. Precisava, também, processar em sua cabeça que acabara de matar um homem.

Fez a mala, organizou a mochila e se dirigiu ao aeroporto. Passou pelo raio-x. Lembrou da faca sangrenta.

“Agora me descobrem. Já viram a faca; estou perdida. Por quê não enterrei?”

Parou, respirou. Não havia comoção alguma ao seu redor; e ela sabia o quanto aeroportos eram rigorosos com segurança.

Estranhou não virem a faca sangrenta. Tudo ao seu redor continuava normal, mas ainda se preocupava em esconder a faca.

Consumida por ansiedade, andava em todos os lugares pensando: “tenho uma faca na mochila. Ninguém pode saber. Vão me achar.”

E ninguém, nunca, a achou, ou sequer desconfiou, que na mochila da mulher havia uma faca sangrenta.

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Olá, pessoal!

Este foi um micro-conto que escrevi para simbolizar as “facas sangrentas” que carregamos por aí. Sobre o quanto achamos que nossa bagagem nos persegue, e, na verdade, não percebemos que estamos agarrando com força ao passado – que pode ser feio, sujo e sangrento – e nos fazendo mal no processo. Somos assombrados diariamente por traumas, preocupações, medos, inseguranças e ansiedades. Andamos temerosos de que os outros descubram e isso arruíne algo na nossa vida.

Todos têm bagagem. Não existe um único ser humano na vida que não sofra ou não carregue uma história cabeluda. Um dia é daquela pessoa, outro dia é de você que falarão. Como sociedade, vemos diariamente julgamentos, fofocas e boatos por aí. Há pessoas que constroem um negócio focado nisso, e até se dedicam a vida toda a saber dos outros. Acredito que cabe a cada um de nós ter o famoso bom senso, unido ao senso crítico, de desconfiar e avaliar a veracidade das informações que recebemos.

Será que gostaríamos de ser tratados da mesma forma que estamos tratando o outro, com as nossas dificuldades e imperfeições?

Não podemos paralisar tudo e viver com medo. No micro-conto, a personagem precisava viajar. E, mesmo com a faca sangrenta, não foi descoberta. Vai chegar um hora em que teremos que contar a alguém sobre a nossa faca. Ou não.

Talvez valha a pena olharmos com outros olhos para aqueles que passam por escrutínio público, hoje em dia também conhecido como cancelamento. Tirando aqueles que cometeram crimes hediondos e atrocidades, convido-lhes a se colocarem no lugar do outro, ou como dizemos em terapia “colocar óculos diferentes”, para entendermos a imperfeição de cada um. E a nossa própria.

Afinal, vivemos em sociedade. Como serei tolerado se eu não tolerar?

Vocês tiveram outra interpretação do conto? Me contem nos comentários.

Obrigada por estarem aqui.

Até a próxima. 🙂

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Caroline Tirado

Caroline Tirado é psicóloga e escritora. Escreve desde os 12 anos. Sempre foi curiosa e questionadora dos por quês da vida e do mundo, principalmente sobre o comportamento humano. Aprecia as coisas simples. Gosta de filmes, séries, livros, HQs, músicas, jogos e o que há de legal por aí.

Este post tem 2 comentários

  1. Pepe

    Sobre colocar óculos diferentes…: "Quando usamos óculos com lentes vermelhas, todas as bandeiras vermelhas são apenas… Bandeiras", não é mesmo?

  2. Caroline

    Como um touro que é ensinado a ir atrás de bandeiras vermelhas 🙂 ótima reflexão!

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