5 Contribuições do jogo The Sims (2000-2014) para o desenvolvimento humano

Olá, pessoal!

Hoje trago minha análise sobre as cinco contribuições do jogo The Sims (criado por Will Wright/Electronic Arts/Maxis no ano 2000) para várias esferas do desenvolvimento humano.

Falo como uma pessoa que joga desde os 8 anos. Meu primeiro contato com o The Sims foi com sua primeira versão, o The Sims 1. Ah, aquele gráfico todo pixelado e primitivo! Zoado, mas se abria ali um mundo novo de possibilidades para a mente de uma criança curiosa. Uma extensão de um “jogo de bonecas de faz de contas” em que se podia controlar absolutamente tudo (dentro dos comandos do jogo) sobre o que você quisesse controlar. Divertido, não?

Uma breve introdução: The Sims é uma série de jogos de simulação da vida real. Existem quatro versões até a publicação desde post, em 2023, e dentro destas versões há pacotes de expansão, que permitem adicionar experiências novas para o jogo original (como estações, apartamentos, animais). É considerado do tipo “sandbox”, que significa que não há um objetivo pré-definido para o jogador completar. Literalmente é o que você desejar. É possível criar famílias de até 8 pessoas (até com animais, se houver a expansão), comprar/construir casas, modificar a cidade e interagir com seus moradores.

Uma observação pertinente: os jogadores espertinhos encontraram formas de jogar sem algumas limitações, ou incrementando o jogo através de programações diferentes não originais, mas aqui focarei no jogo “normal”. É passível de nota que também existem “cheat codes” (os códigos usados para facilitar o gameplay) na vida real, e nem sempre elas facilitam – às vezes tiram a graça. Interessante, para mim, que os desenvolvedores não punem este comportamento – será que pensam adicionar à experiência?

Do ponto de vista psicológico, o jogo abrange várias teorias – podemos citar alguns teóricos que comentam sobre objeto transicional (Winnicott – na ausência da mãe, para suportar, é elegido um objeto de “transição” até o original voltar. Neste caso, seria assim: não dá pra viver na vida real, vamos para o virtual. Rs), livre-arbítrio (Skinner), desenvolvimento motor-cognitivo (Piaget), imaginação, capacidade de percepção, administração de demandas, trabalho sob pressão, criatividade, memória, a importância do lúdico no desenvolvimento infantil, o impacto da tecnologia no tratamento de transtornos psicológicos (e no desenvolvimento de alguns rs), crises existenciais, sentido/propósito da vida (Viktor Frankl), entre outros (lembrou de mais algum? Comente no post! Adoraria saber sua perspectiva).

Reuni, a seguir, cinco aspectos formadores de personalidade que o jogo aborda para serem discutidos com mais profundidade:

1. Aspirações: este aspecto se conecta com vários outros, e define mais ou menos como será a sua experiência de jogo, ou que rumo seguirá. Quando se está construindo um Sim, na tela inicial, é possível escolher suas preferências e sonhos. Que tipo de músicas/cores/atividades gosta ou não; três traços de personalidade (é brincalhão? Terá tendência a fazer mais piadas interagindo com outros Sims; é geek? Se sentirá atraído para atividades que envolvam videogame e leitura; é maldoso? Tenderá a não ter tanto tato nas relações com outros Sims) e, com base nisso, um sonho principal – ser escritor, programador, ir à Lua, ser cientista, chef de cozinha, ter uma família, ter popularidade, ser o Sim mais rico do mundo, encontrar o amor verdadeiro. Existem várias – e, nota-se, há muitas que não se relacionam com carreira. A aspiração seria o sentido da vida do Sim, pois a partir daí surgirão vontades, desejos a serem realizados e pensamentos e sentimentos relacionados à realização ou não destes objetivos.

Isso me lembra a abertura de “Meninas Super-Poderosas”, quando o Professor está criando as meninas. Para quem tem curiosidade e ficou nostálgico, aqui: https://youtu.be/YvINnKvYWGg

 

2. Habilidades sociais: quando um Sim é criado, você precisa inteagir com os outros. Precisa dar comandos para este Sim, ou vários Sims se for uma família ou grupo; o programa do jogo dá várias categorias de como interagir, com suas “sub-ações”: ser amigável, engraçado, romântico, maldoso e travesso, dentre os assuntos do momento e também dos sentimentos do Sim que está interagindo (e olhe só: o que ele vai percebendo sobre o outro Sim pode aparecer nas interações). Como adquirir habilidade social, ter simpatia dos outros, perder a timidez, ser extrovertido? Para construir relacionamentos (de qualquer natureza) no The Sims, o personagem vai aprendendo conforme for interagindo. A barrinha vai aumentando ou diminuindo, as opções de convera abrangendo ou cessando.

Na vida real, todos temos um filtro para interagir com o mundo. Como sabemos se alguém é bom ou mau? Se tem boas intenções ou não? Quando ser amigável, quando ser mais íntimo ou assertivo?

Aqui está um exemplo (do meu próprio gameplay, em uma interação de um personagem passando na rua):

3. Sentimentos: a partir do The Sims 4 (lançado em 2014), os personagens passaram a lidar com suas próprias emoções (coitados). Foi um lançamento revolucionário – não havia, ainda, abordagens de jogos assim. Desta maneira, os Sims passaram a se sentir agitados, animados, ansiosos, depressivos, desconfortáveis, alegres, brincalhões, apaixonados, felizes, inspirados, tensos, paqueradores, tristes, exaustos; todos com repercussões e sensações referentes à emoção experiencidada. Que coisa maravilhosa! E difícil de administrar. Quando foi lançada, a quarta versão do jogo foi muito criticada por isso, pois a tecnologia ainda estava sendo desenvolvida (e não estamos todos desenvolvendo a nossa?). É interessante notar que os jogadores sentiram dificuldade em fazer o Sim lidar com suas próprias emoções. Quando a realidade bate à porta, e o jogo se parece com a vida, perde a graça?

Conectando como um Sim se sente naquele momento com a forma com a qual ele interage, temos sub-ações como “Conversar sobre…” (aparecedo um assunto de interesse do Sim selecionado) e opções de acordo com o sentimento (indicado por cor correspondente). Estes exemplos podem dar dicas de como se comportar na vida real. E observar, ali, as consequências de fazer uma coisa ou outra. Quando pensamos em crianças aprendendo a interagir com o mundo (colegas da escola, família, etc.), ou pessoas com dificuldade de interação (seja por transtornos de ansiedade social ou transtorno do espectro autista ou qualquer dificuldade), isso pode ser bastante benéfico.

Uma característica interessante desta funcionalidade é ensinar sobre dicas não verbais de sensações e como elas se expressam no rosto/corpo:

Na imagem acima, a Sim estava desconfortável. Observem a pequena imagem vermelha ao lado da descrição também vermelha na vertical, indicando o “desconfortável” – está dizendo o motivo do desconforto. A Sim se sente desconfortável pois foi na academia e está com os músculos doendo.

4. Independência (ou “adultescência”): em “Adultecer: A dor e o prazer de tornar-se Adulto” (2008), José Outeiral fala sobre o processo de desenvolvimento do ser humano quando chega na vida adulta. O que é vida adulta? Considera-se, em média, dos 21 aos 60 anos; eu acredito que, na sociedade atual, com as mudanças sócio-econômicas, culturais e tecnológicas, este período comece por volta dos 25 anos e vá lá pelos 65. Há estudos que indicam que o cérebro humano “termina” (numa chuva de aspas! Pois o cérebro possui plasticidade e está sempre se adaptando e criando novas sinapses) de se formar aos 25 anos; isso indicaria que, em comparação com um carro, nosso cérebro estaria pronto pra correr na Fórmula 1 e dali em diante só substituir as peças! Rs. Ser adulto, então, englobaria uma série de habilidades, atividades e responsabilidades novas e desafiantes para o desenvolvimento humano. Ser independente.

Independência. O que é? Segundo o dicionário Oxford, significa “estado, condição, caráter do que ou de quem goza de autonomia, de liberdade com relação a alguém ou algo”. Poderíamos entrar em buracos de minhoca sobre liberdade aqui, mas me limitarei a comentar que, tendo liberdade de escolha, pode ser difícil fazer escolhas (paradoxo da liberdade – tema de muitos TCC´s, livros, angústias de filósofos ao longo da humanidade e noites mal dormidas de poetas). Especialmente quando isso envolve coisas sérias e com responsabilidades, consequências. Quando isso é direcionado a um personagem, o peso desta escolha fica em segundo plano e você tem a oportunidade de observar as consequências do que foi escolhido, adquirindo conhecimento e podendo testar várias opçoes.  Ainda é possível, no menu do jogo, ligar e desligar o botão de livre-arbítrio dos Sims.

Outro aspecto interessante de independência que podemos observar no jogo é sobre as necessidades vitais. Assim como os seres humanos, os Sims também possuem necessidades vitais – banheiro, higiene, fome, energia, social, diversão – que, se não forem atendidas, há consequências desagradáveis (aparece uma fumaça verde com moscas quando o Sim não toma banho; uma poça de água no chão quando não vai ao banheiro; literalmente desmaia no chão quando não dorme; vai à loucura quando não interage com ninguém) que têm interferência direta em como o Sim se sente. Isso requer atenção, lembrar de verificar e cuidar do seu Sim. E, caso forem extremamente negligenciadas, o Sim pode até morrer. Isso ensina ao jogador que é necessário dar atenção às próprias necessidades, ou há consequências maiores. Mostra o quão irritante isso pode ser, parar o que está fazendo para ir ao banheiro, chegar do trabalho cansado e ainda ter que cozinhar (há a opção de pedir comida, mas custa simoleons, o dinheiro do jogo), o chuveiro queimar e não funcionar mais até você consertar (e tomar um choque). Os imprevistos da vida.

Nos faz pensar também – quais necessidades, nossas, não estão sendo atendidas neste momento, e  estão gerando consequências desagradáveis? Quais barrinhas estão mais cheias, outras menos? Onde estamos dedicando a maior parte da nossa atenção?

O jogo conta com uma infinidade de receitas da culinária ao redor do mundo, com informações sobre como fazer, o nível de dificuldade, e mostra o Sim fazendo o passo a passo – cortando os ingredientes, levando ao fogo, até se queimando (ou o fogão pegando fogo!) e isso tem o poder de afetar o seu humor. Se o nível de culinária for pequeno (um iniciante), o Sim terá algumas opções limitadas e conforme for cozinhando cada vez mais vai aumentando seu nível e abrangendo o escopo de receitas disponíveis.

Podemos comentar sobre a independência financeira também. Quando se cria um Sim, você recebe uma quantidade de dinheiro pré-definida pelo jogo, com base nos personagens (se há só um personagem, 20 mil simoleons, o dinheiro do jogo; se há mais, vai aumentando) e é preciso gastar esse dinheiro para fazer coisas. Comprar um terreno ou uma casa pronta? Mobiliada ou não? As limitações já começam aí: algumas casas, por mais bonitas e grandes, não podem ser compradas, há contas a pagar toda semana, aquele móvel todo artístico é caro, a mesa de xadrez custa mais do que uma cama…o The Sims se diferencia de muitos jogos por isso também, estimula o jogador a pensar em alternativas e a conquistar o que deseja (a fan base certamente é criativa neste quesito, com adaptações e programações diferentes).

Ensina que é preciso conseguir um trabalho para ganhar simoleons e sobreviver/avançar no jogo, onde se consegue um emprego, as escolhas e diferentes carreiras (tem até um resuminho de cada uma!). Os criadores do jogo realmente capricharam: existe até a profissão “bandidagem”!

5. Morte/perda: é verídico, há uma Dona Morte no The Sims. É possível até fazer amizade com ela! E enganá-la se conversar com jeitinho!

Ao permitir a criação de uma família, de uma progressão na construção de uma história, o aumento de gerações e a complexidade de interações, o jogo dá acesso a uma melhor compreensão sobre a vida e a morte. Lidar com a perda de um personagem (seja porque você mesmo tirou a escada na piscina e o fez se afogar, ou um incêndio inesperado que não tinha alarme, ou a inevitável idade avançada) pode ajudar a lidar com a perda de uma forma geral. Mesmo virtualmente, é possível criar um vínculo emocional com o personagem e sentir tristeza por suas decepções ou perdas. Já dizia Lavoisier, nada se cria, tudo se transforma.

Não precisa, necessariamente, ser uma morte de um personagem. Pode ser um emprego que não deu certo, a demora para aprender piano, a recusa do próprio Sim a fazer uma atividade que você queria que ele fizesse (hello expectativas frustradas), o bebê que não para de chorar e você já alimentou, já trocou a fralda, já abraçou e nada. Lidar com coisas fora e dentro do seu controle.

E pode ser que você não tenha salvado antes o jogo. Algumas escolhas não são escolhas, mas são para sempre.

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Posso continuar falando do jogo por muito tempo (e, neste momento, me encontro com a necessidade “energia” um pouco menos cheia). É bastante coisa para assimilar, mas que vem com naturalidade quando se começa a jogar. Está aí outra dádiva do jogo – ao relegar o cuidado para um terceiro (o seu personagem), fica mais fácil de aprender. É o mesmo princípio de atividades lúdicas infantis, quase a mesma função de um conto de fadas. Só que, este, você mesmo cria!

Igualmente impressionante é a capacidade de dependência que o jogo pode proporcionar. Se é uma simulação da vida, e há jeitos fáceis e mais legais, sem consequências, de viver no virtual, por quê eu viveria na vida real? Ou até passar a mensagem de que na vida as coisas são assim, tudo existe um “cheat code”, uma trapaça, um jogo salvo anteriormente, ou uma válvula de escape para não lidar com as consequências das nossas escolhas.

Por outro lado, agora falando sobre filosofia, pode ser fácil se sentir fora da realidade material, como um Sim. Há alguém cuidando de nós como nós cuidamos dos nossos Sims? As vontades repentinas, os desejos latentes, os sonhos que nunca se realizam ou que se fixam para sempre, os milagres e as mortes inexplicáveis; como lidar com tudo?

Para mim, o The Sims foi revolucionário neste sentido. O mundo realmente é feito de perguntas, e quanto mais nos questionamos, menos respostas temos. Mas a sensação é que vamos dando passos, e nesses passos encontramos alguma coisa.

INDICAÇÕES

Para quem gosta de filosofar – e de ficção científica nessa vibe -, fica a indicação da série Under The Dome (2013), que conta a história de uma cidade que do nada foi envolta por uma redoma misteriosa. A série The Good Place (2016) é mais filosófica ainda – o que é ser bom? O que é ser mau? Tem como mudar isso?

O filme Questão de Tempo (2013) também aborda assuntos relacionados a escolhas e caminhos, uma dinâmica similar ao processo de “salvar” o progresso do The Sims.

Será que Matrix (1999) também entraria neste bem bolado como inspiração para o jogo? Afinal, fora da Matrix, o Neo consegue aprender habilidades com os “cheat codes”. Talvez seja a título de curiosidade, mas me veio à mente uma similaridade.

Lembrando que tudo o que está escrito aqui faz parte de uma análise minha sobre o jogo.

E aí, o que vocês pensam sobre isso? Já tiveram oportunidade de jogar? Qual foi a experiência de vocês?

Obrigada por estarem aqui! 🙂

Até a próxima.

P.S.: Todas as imagens são do meu próprio jogo do The Sims. Os desenvolvedores retêm todos os direitos autorais.

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Caroline Tirado

Caroline Tirado é psicóloga e escritora. Escreve desde os 12 anos. Sempre foi curiosa e questionadora dos por quês da vida e do mundo, principalmente sobre o comportamento humano. Aprecia as coisas simples. Gosta de filmes, séries, livros, HQs, músicas, jogos e o que há de legal por aí.

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